... na penúltima jornada tinha subido à mesa 2, pelo que fui seguindo a partida da primeira mesa disputada por dois jogadores com elo superior a 1900 pontos, naturais candidatos à vitória final da prova que era sub-2000 e potenciais adversários meus no jogo decisivo.
O Michel Germain, cujo nome já era meu conhecido - este jogador tinha liderado a competição desde o início e o staff técnico apaxe, que analisava profundamente os dados do chess-results, em cada reunião diária lá me lembrava que tinha que lhe tirar o escalpe... -, é um jogador muitíssimo rápido, muito posicional mas virtualmente sem qualquer cálculo.
Equacionámos, na véspera, a possibilidade de ele pretender empatar, resultado que lhe garantiria o título e que a mim me deixaria nos prémios monetários; por outro lado, se ele ganhasse a partida seria o vencedor isolado, devido ao meio ponto de vantagem que detinha sobre os segundos classificados, o que significaria $ 1000,00 para ele e $ 0,00 para mim.
Face a esta conjuntura classificativa, o staff apaxe, qual conselho tribal, foi taxativo: ou tudo ou nada! Eu anuí, prefigurando um jogo disputado em que tudo poderia acontecer, embora estivesse preparado para travar o peão de F no caso de as coisas se mostrassem complicadas...
... é que mais vale uns cabelos na mão que um escalpe a voar!
No sábado de manhã, à hora marcada para o despertar, o Luís pôs as colunas do acampamento a soar como as do Dragão e o Freddy Mercury acordou-me dizendo que "We are the champions", selecção musical que prosseguiu com o "Eye of the Tiger" e "A Portuguesa"...
Só faltou mesmo o "Jogar, Ver, Comer", hino apaxe by Suricata, mas ninguém duvidará que os apaxes estavam prontos para a refrega que o staff técnico - que foi assistir ao encontro in loco (era sábado) - fez tudo o que estava ao seu alcance para que a estória tivesse um final feliz e a bandeira apaxe ficasse espetada no topo das cataratas do Niágara e das Rocky Mountains.
Ao contrário da tradição apaxe, o staff garantiu a chegada atempada ao local de jogo, sentaram-me cinco minutos antes da jornada começar e trouxeram-me um copo de água para ir combatendo a desidratação.
Apenas uma foto para lembrar a Mesa 1 da última jornada do Open do Canadá e deixaram-me para fazer aquilo que naquele momento só eu podia poderia fazer: «cerrar os punhos e ir à luta!» - expressão batida mas que na altura recordei ter-me sido dita uns anos antes num momento pessoal e profissional em que não havia outra hipótese que não tentar fazer as coisas acontecer o melhor possível.
Pés assentes no chão a sentir o conforto das sapatilhas de corrida, casaco já vestido para manter o calor corporal (o ar condicionado era demasiado bom), peças arranjadas nas casas iniciais com um toque de enfant terrible - com os meus Cavalos de costas para o adversário - e um ligeiro momento zen interrompido pelo "Final Round! Start your clocks!" do árbitro.
Estava sozinho na mesa, ponho o relógio a contar para as brancas.
O meu adversário chega dois minutos depois, passo apressado, café, chocolate e uma bolsa na mão. Magro, grisalho e com cerca de 50 anos, veste roupa escura que lhe aguça o olhar.
Cumprimenta-me de forma expedita e começa a debitar lances rapidamente, optando por uma sequência inicial bastante conhecida que não esconde aquilo ao que vem:
1. e4 e5 2. Cf3 Cc6 3. Bc4 Bc5 4. c3 Cf6 5. d3
As brancas optam por jogar a Abertura Italiana, variante Giuco Pianissimo ("jogo calmíssimo", em italiano), através da qual pretendem desenvolver as suas peças calmamente, evitar o confronto imediato dos exércitos e efectuar uma abordagem posicional ao jogo, opção que tem a reputação de originar muitos empates.
Não fico desconfortável com esta escolha: trata-se de uma das primeiras aberturas que me ensinaram e cujos princípios básicos são simples: colocar os Cavalos no centro, os Bispos em boas diagonais, proteger o Rei através de roque pequeno e depois reagir ao avanço das Brancas na ala de Dama (b2-b4-b5) com a ruptura do centro ou, no caso de este ficar bloqueado, ir para a jugular através de um ataque ao roque branco na ala de Rei.
5. ... d6 6. 0-0 Bg4 7. Cbd2 0-0 8. h3
Primeira decisão da partida: atacado o Bispo, para onde recuar?
Para h5, mantendo a pregagem do Cavalo em f3, mas estando sujeito à pressão branca (b4, a4, g4) ainda que com jogo igual?
Ou procurar já criar desequilíbrios, recuar para a casa e6, o que pode abrir a coluna F para a Torre e outras peças de ataque negras, ainda que concedendo potenciais alvos em b7 ou f6?
Considerando a experiência do meu adversário, o facto de esta jornada ser às 11:00 horas quando as anteriores haviam sido às 18:00 (a alteração da rotina poderia ter implicado menos horas de sono para o adversário) e a sua aparente predisposição para jogar muito rapidamente (com menos cálculo), optei por propor a abertura das hostilidades, o que as Brancas prontamente aceitaram:
8. ... Be6 9. Bxe6 fxe6
Aceitaram mas com segundas intenções!
Sabendo que o ataque às debilidades minha posição lhe podia dar um ascendente, o meu adversário jogou no tabuleiro
10. Db3
... e também jogou um mind game com certa postura teatral:
«I offer you a draw. And I think I will not do it again.»
"Olha-m'este!", pensei eu depois de ter sentido alguma prepotência naquela segunda parte.
"Hás-de querê-las e num tê-las...", disse para os meus botões quando o olhei nos olhos e percebi que ele estava ali para empatar, mais do que para ganhar.
Surpreendi-o mantendo a boca fechada, imergindo de novo na posição, declinando a proposta de empate com 10. ... Dc8, jogada com a qual a Dama negra ficava presa à defesa dos peões de b7 e c6.
Seguiu-se 11. Cc4 que abre uma via verde para o desenvolvimento do Bispo de c1 e eu mantive o plano inicial de atacar na ala de Rei no caso de o centro estar inacessível.
Joguei 11. ... Ch5, com ideia de o colocar em f4 de onde teria vistas invejáveis sobre g2 e h3.
O oponente respondeu com 12. Be3, procurando uma posição simétrica e, portanto, mais estável e empatativa, o que recusei, recuando o Bispo para b6 que também liberta a Dama negra da protecção do peão b7.
As Brancas fazem o seu jogo e simplificam a partida com 13. Cxb6, eliminando o Bispo que estava na mesma diagonal que o seu Rei, e as Negras respondem com 13. ... axb6, igualando o material e abrindo a coluna A para a sua Torre.
O jogo estava igualado e as brancas potenciam mais trocas de material, em busca do meio ponto que perseguem:
14. d4 exd4 15. cxd4 Cf4
Até este momento, o meu adversário gastara apenas 8 minutos úteis (considerando que cada jogador ganha 30 segundos com cada jogada), enquanto em já tinha utilizado 30.
Com o meu último lance tinha criado uma ameaça: Cxh3, gxh3, Txf3, ganhando um peão e estragando o muro de protecção do castelo do Rei branco.
As brancas perceberam a ameça e jogaram 16. Rh2, pretendendo responder a Cxh3 com Rxh3, o que lhe daria uma confortável vantagem material, pois as negras ficariam sem um Cavalo (3 pontos) ganhando apenas um peão (1 ponto), e não tinham ataque que impedisse o Rei de voltar ao seu resguardo (o Rei branco poderia ir de h3 para h2 e depois para g1 sem que as negras nada pudessem fazer). [O nível do comentário está baixo para os Amigos de Urgezes, mas é a pensar nos Amigos de Loulé]
Nesta altura, antes de ir para o roque branco "rapidamente e em força", decidi proteger melhor o meu Rei e afastá-lo da diagonal onde se encontrava também a Dama branca com 16. ... Rh8.
Com o peão b7 fora de alcance e o de e6 menos apetecível (com a última jogada das negras, o peão deixou de estar pregado e, com mobilidade, é uma presa mais difícil porque pode não estar quieta), as Brancas decidiram reciclar a posição da Dama, pondo-a em movimento com destino à ala do Rei, com 17. Dd1.
Como esta jogada não me criou nenhuma ameaça - as jogadas em que se recuam peças normalmente não são os melhores! -, decidi tentar obter a iniciativa do jogo com 17. ... e5.
A jogada 17. ... e5:
a) disputa a casa d4 no centro do tabuleiro;
b) dá protecção ao Cf4; e
c) abre a diagonal c8-h3, passando a Dama a auxiliar o Cavalo na pressão ao peão h3.
As brancas descuram este último efeito (seta vermelha na imagem) e jogaram 18. Dd2, aumentando a pressão sobre o meu Cf4 mas diminuindo a defesa do seu próprio Cavalo que passou a estar defendido apenas pelo peão de g2.
Agora o peão de g2 está sobrecarregado: tem que defender quer o peão h3 quer o Cavalo f3.
(o Rei não pode ajudar a defender h3 porque ficaria em xeque...)
Como está essa memória?
Alguma ideia sobre a melhor continuação para as brancas?
- a solução está 3 imagens acima! -
Um intervalo enquanto pensam:
Teria sido bastante melhor para as brancas, e pior para mim, em vez de 18. Dd2 jogar 18. d5:
Se compararem esta posição com a anterior, aqui as Brancas continuam com o Cf3 defendido pela Dama, obrigam o meu Cc6 a sair da coluna C e ficam com o peão c7 - que defende o dobrado de b6 - como alvo a atacar.
Regressando à partida:
Encontraram o 18. ... Cxh3?
Agora a posição branca é desconfortável:
19. Rxh3 não é legalmente possível por causa da Dc8 que deixaria o Rei em xeque; e19. gxh3 permite Txf3
com ameaça ao peão de h3, o único protector do Rei branco que ficaria em apuros.
Com duas peças pesadas (Dama e Torre) tão perto do Rei branco, há a possibilidade de utilizar a técnica das escadinhas para dar xeque-mate:
A técnica das escadinhas poderia ser utilizada com:
1. ... Dxh3+
2. Rg1 Dg4+
3. Rh2 Tf3#
Por este motivo, na partida, as Brancas não capturaram o Cavalo em h3.
Jogaram antes 19. dxe5, ao que eu respondi com dxe5, mantendo a pressão:
As negras mantêm a pressão com as suas Torres que estão em colunas com muito espaço:
- por um lado, se gxh3 Txf3 com muito ataque, como vimos;
- por outro, a Ta8 mantém a Ta1 presa à defesa do peão de a2.
Possivelmente para jogar depois Tad1 (colocando a Torre que não está a fazer nada na coluna D que está aberta) sem perder o peão de a2 que ficaria desprotegido, as brancas jogaram 20. a3.
As negras, satisfeitas com o pecúlio pilhado de um peão (1 ponto), deram ordens para o reagrupamento das suas forças (o xadrez é um jogo de equipa), de modo a preparar novo ataque com mais participantes, recuando o Cavalo com 20. ... Cf4.
Neste momento as negras estão melhores no tabuleiro, embora a ainda distantes 20 lances do controlo de tempo e o mostrador das brancas mostra 1:19 horas disponíveis contra 0:30 minutos das negras.
Nas próximas 20 jogadas só poderia gastar cerca de 2 minutos por lance, sob pena de poder perder a partida, o título e o prémio por causa do tempo.
Uma vez que o Cavalo em f4 estava a ser atacado por duas peças (o Bispo em e3 e a Dama em d2) e defendido também por duas (o peão de e5 e a Torre de f8), as brancas tentaram remover um defensor com 21. Cxe5, capturando um peão (1 ponto).
Aqui as brancas esperam que as negras joguem o normal e imediato Cxe5 (3 pontos), o que deixaria a partida materialmente igual depois de Bxf4 (3 pontos).
Além de recuperarem a desvantagem que tinham de um peão, as brancas ficariam com um plano para tentar executar: o peão da coluna E está passado - não há peões nem na coluna F, na E nem na D -, pelo que, sem opositores directos, as brancas vão tentar fazê-lo chegar à oitava fila e promovê-lo a Dama.
As coisas ficariam desagradáveis para as negras.
Felizmente, o apaxe tirou uma pata de coelho do pescoço e manteve a vantagem de um peão com
22. ... Cxg2
Se 23. Rxg2, Cxe5 dá às negras uma posição em que, além de um peão a mais, o Rei branco está sem protecção, sendo, portanto, um alvo apetecível.
De modo que a alternativa, do ponto de vista defensivo, é eliminar uma peça atacante, de maneira a enfraquecer o ataque, pelo que as brancas jogaram 23. Cxc6.
Muito satisfeito com o desenrolar dos acontecimentos, tento procurar a maneira de transformar a vantagem em vitória.
Como "Quem tem vantagem material quer trocar peças e não peões", dada a vantagem de um peão estou a equacionar jogar 23. ... Cxe3 que, como ameaça a Tf1, tem de ser tomada pelas brancas, ao que continuaria com 24. ... bxc6 ...
... com ideias de um ataque ao Rei branco com Tf8-f6-g6(ou h6), Ta8-a5-h4(ou g4) e Dg4 ...
Estou absorto nestas considerações quando um tsunami passa pela cabeça do meu adversário que, sem qualquer aviso prévio, sem falar ou parar o relógio, abre as mãos e estica os braços...
... e foi mais ou menos isto ...
Foram abaixo quase todas as peças dele e algumas minhas, ao mesmo tempo que quebrava o silêncio quase sepulcral da sala para dizer "I'm sick, I'm taking medicins, I shouldn't have been playing this tournament".
Como eram dois braços mas não eram para dar um abraço, olhei para ele mas não abri a boca e, sem resposta imediata, pegou nas trouxas, deu meia-volta e foi à sua vida.
Pus o Rei negro no centro do tabuleiro e comecei a arrumar as minhas peças, recebendo de imediato os parabéns dos jogadores da mesa 2. Entretanto um árbitro veio ajudar a colocar as peças das brancas na posição inicial e, como se aquilo fosse normal - se calhar é... -, só me disse "Congratulations! Don't Forget to mark your score outside".
À saída da sala de jogo vejo o Vasco e o Luís a subirem apressadamente as escadas.
"O que é que aconteceu? O teu adversário entrou e saiu do quarto de banho mas depois desceu as escadas a bufar!"
*
E foi assim, no continente das oportunidades, que um apaxe conquistou a Section C do Canada Open, cujo regulamento não tinha qualquer critério de desempate.
Os jogadores eram ordenados por pontos, depois por elo e finalmente por ordem alfabética.
Quem tinha os mesmos pontos, repartia em partes iguais o bolo monetário.
Tive direito a 15 segundos de fama...
... e depois dos xeques, ao cheque...
... ao cheque, que aos dólares canadianos foi outra conversa. Levantar o dinheiro sem ter conta nem ser residente no Canadá é outra estória. Só quando fui ao balcão é que percebi por que é que o GM Tiviakov e o GM Maghami, holandês e iraniano não residentes, quiseram receber em cash...
*
A prova também acabou bem para a Cláudia, com uma vitória que a deixou na 44.ª posição, com os mesmos três pontos e meio do 42.º, ela que era a 70.ª jogadora do ranking inicial.
A experiência xadrezística terminou com um torneio de rápidas. No Canadá, ao contrário de cá, cada jogador joga de brancas e de negras com o mesmo adversário. Valeu pela possibilidade de testar as minhas aberturas com dois jogadores de 2250+ e outro de 2100+, tendo percebido onde estão algumas falhas, mas também obtido boas posições que por uma única vez me permitiram pontuar.
Nesta prova, na noite do último dia, os 95 sobreviventes estavam de rastos (terminei em 44.º, com 6 em 12). O único incidente da prova - que distribuiu $ 1.000,00 aos 4 primeiros classificados - foi um miúdo de 12 anos que, cansado, insistia com os adversários que nas rápidas não havia cá "peça tocada peça jogada".
Quando não ia na cantiga, o adversário chamava o árbitro que lhe dizia que tinha que jogar a peça tocada e ele, a contragosto, lá jogava... até que decidiu não o fazer. O árbitro declarou então "You lost your game." e o miúdo começa então a choramingar, quase que uivando, deixando o adversário desconfortável e fazendo uma «chess mum» entrar no activo com um xi-coração e uma festa na cabeça.
Debalde!
Muito mais eficaz, ao fim de cerca de um minuto de concerto, foi a gargalhada geral que ecoou na sala e que lá o calou.
E, pronto, em traços gerais foi isto que aconteceu no torneio.
O Canadá é nosso e há-de ser!
PS:
E esta, hein?
Ah, pois é!
Dois mil cento e onze...
Agora já sabem por que é que os Grandes Mestres Tiviakov, Maghami e van Kampen, vencedores da Secção 2400+, e a promessa sub-8, campeã do continente da América do Norte este ano, Julia Kuleshova, vencedora da Secção E, tiram fotografias comigo.
Venha o próximo!
2 comentários:
"venha o próximo" !!!
parabéns Tiago,
e até sábado :)
Vamos a Lisboa? :p
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