Agora que o campeonato terminou, com a vitória de Viswanathan Anand, publico aqui uma entrevista dada pelo mesmo, ao jornal Alemão "Der Spiegel", ainda antes do campeonato se ter realizado.
Na mesma podemos conhecer um pouco melhor o Campeão do Mundo de xadrez, e analisar a forma como o mesmo se preparou para o encontro. Anand fala também do seu encontro com Bobby Fischer
A tradução desta entrevista foi-nos gentimente cedida pelo Moto Clube do Porto, publicada no seu blog, crazychess, o que agradecemos.
"XADREZ É COMO REPRESENTAR"
Entrevista com Viswanathan Anand no "Der Spiegel"
SPIEGEL: Sr. Anand, dentro de duas semanas você vai defender o seu título de Campeão Mundial contra o Grande-Mestre Russo Vladimir Kramnik, em Bona (Alemanha). Duas semanas atrás você terminou em último no Torneio de Mestres em Bilbao. Isto é um "handicap" psicológico?
Anand: Muito obrigado por ter posto esta questão. Ela faz-me lembrar de John Cleese dos "Monty Python". No "Fawlty Towers" um grupo de alemães visita o hotel, e ele adverte o seu pessoal para não mencionar a guerra - enquanto ele próprio não conseguer falar de outra coisa. Então, por favor: não mencionem Bilbao.
SPIELGEL: OK, então vamos para Bona. O Campeonato do Mundo terá oito jogos (nota: na verdade seriam doze), com um possível tiebreak. Você conhece Kramnik há dezanove anos. Ele ainda o pode surpreender?
Anand: Nós temos vindo a jogar nos mesmos torneios desde 1993. Mas existe uma diferença entre conhecer e compreender alguém. Nos últimos vinte anos Kramnik jogou alguns milhares de jogos, e, se você me mostrar uma posição de um deles, em 90 por cento dos casos eu seria capaz de lhe dizer de que jogo essa posição faz parte. Mas não se pode concluir que ele me seja transparente. De facto eu espero que ele me surpreenda. E vice-versa, logicamente.
SPIEGEL: Como é que se preparou para o Campeonato do Mundo?
Anand: Eu tenho vindo a estudar Kramnik desde o fim de Abril, até dez horas por dia, aqui, na cave da minha casa, onde tenho o meu escritório. Tenho uma base de dados, e, construo planos de jogo. Tento neutralizar posições nas quais Kramnik é forte. Ele está a fazer o mesmo em relação ao meu jogo, o que eu, evidentemente, tenho em consideração. Deixe-me pôr a questão desta forma: eu tenho de me lembrar de que ele está a pensar o que eu estarei a pensar acerca dele. Em todo o caso estamos a trabalhar há meses, com o computador, tentando encontrar novos caminhos.
SPIEGEL: Os computadores estão a ficar mais e mais importantes. O xadrez passou a ser um jogo de preparação - quem estiver mais bem preparado, ganha?
Anand: Sempre foi o caso. Hoje, nós analisamos os nossos jogos com o computador. No século XVI as pessoas faziam-no com o tabuleiro. Existe somente uma diferença de grau. A preparação para o Campeonato do Mundo sempre foi uma "corrida às armas", nos primeiros tempos com livros, depois com os "segundos", e, hoje com os computadores. O computador é um excelente parceiro de treinamento. Ele ajuda-me a melhorar o meu jogo.
SPIEGEL: Mas se o xadrez se tornar num jogo de computador, e cada movimento for calculado pela máquina, então o ser humano não está simplesmente a mover as peças, e não irão todos os jogos terminar em empate?
Anand: Não. Na verdade eu fui sempre um pessimista. Há dez anos eu disse que 2010 seria o fim do xadrez, que o xadrez estaria esgotado. Mas não é verdade. O xadrez não morrerá tão depressa. Ainda existem muitas salas no edifício em que ainda não entramos. Isso acontecerá em 2015? Penso que não. Por cada porta que os computadores fecharam, abriram uma nova.
SPIEGEL: O que quer dizer com isso?
Anand: Há vinte anos atrás faziamos coisas, que hoje já não funcionam devido aos computadores. Nós costumávamos fazer bluff nos jogos, mas hoje os nossos oponentes analisam-nos com um computador, e, reconhecem numa fracção de segundo o que estamos a tentar. Os computadores não caem nos truques. Por outro lado, podemos conseguir uma preparação muito mais complexa. Nos últimos anos existiram jogos espectaculares que não seriam possíveis sem os computadores. A possibilidades de jogar certos lances nunca nos teria ocorrido. É similar à astrofísica: o trabalho pode não ser tão romântico como o foi outrora, mas eles não poderiam ter obtido progressos tão grandes, com lápis e papel.
SPIEGEL: Continuamos a ouvir rumores de jogadores que secretamente usam computadores durante os seus jogos. Isto é batota. Estão os génios fora da lâmpada?
Anand: É uma ameaça com a qual temos de viver. Eu estou habituado a ser controlado com detectores de metais antes de começar um jogo. No início, foi um choque para mim, dado que eu cresci numa era inocente nos desportos. Mas a tecnologia desenvolve-se muito depressa. Alguém pode estar sentado num sítio distante, seguindo um jogo com um computador, e enviando informação para um jogador. Os aparelhos receptores estão cada vez menores, e, o número de batoteiros tem vindo a aumentar. Nós temos que tomar medidadas. Temos uma regra que diz que se o telemóvel toca durante um jogo, o jogador perde. Isto é duro, mas tem de ser implementado. A alternativa seria permitir usar computadores durante o jogo.
SPIEGEL: Isso seria como legalizar o doping.
Anand: Eu penso que isto não é doping. É uma forma diferente de jogo. Mas o xadrez deveria continuar a ser um concurso de poder entre dois seres humanos.
SPIEGEL: Qual é o papel das emoções?
Anand: Ela é decisiva. No momento em que você se apercebe que cometeu um erro, é o mais perturbador que pode imaginar. Você tem que manter o controlo das suas emoções. O xadrez é uma forma de representação. Se o seu oponente se apercebe da sua insegurança, ou, do seu aborrecimento ou da sua tristeza, então você está a aumentar a sua coragem. Ele tomará partido da sua fraqueza. A confiança é muito importante - mesmo fingindo estar confiante. Se você comete um erro, mas não deixa que o seu oponente se aperceba no que você está a pensar, então ele pode nem se aperceber do erro cometido.
SPIEGEL: Você é bom a ler na face dos seus oponentes?
Anand: Normalmente as faces deles são completamente calmas, e, sem paixão. A excepção era Garry Kasparov, contra quem eu joguei um Campeonato do Mundo, em Nova Iorque, em 1995. Ele era um livro aberto. O que eu procuro fazer é escutar a respiração deles.
SPIEGEL: Você escuta o seu adversário a respirar?
Anand: Se a respiração for profunda ou superficial, rápida ou lenta - isto revela muito acerca do grau da sua agitação. Num match que dura um mês, mesmo um limpar da garganta pode ser muito importante. Incidentes podem também ser importantes: o seu oponente teve uma discussão com a esposa? Se ele estiver ocupado com assuntos pessoais, não pode estar tão concentrado como é habitual.
SPIEGEL: Você usa truques psicológicos?
Anand: Não.
SPIEGEL: O que é que você acha mais perturbador?
Anand: Quando o meu oponente consegue virar o jogo. Às vezes é quase libertador quando você finalmente perde. Eu penso para comigo, OK, este ponto já foi, amanhã vou jogar melhor. Durante o Campeonato do Mundo você tem que ter cuidado para não entrar em pânico. Isso ocupa a sua mente quando você vê o seu oponente ao pequeno-almoço. Estará ele relaxado? Tenso? Ficamos obcecados de uma forma estranha. Eu e Kramnik estaremos alojados no mesmo hotel, em Bona, mas em alas opostas. Na verdade gostamos um do outro, mas demorará algum tempo até que troquemos algumas palavras.
SPIEGEL: Você consegue desligar, à noite, durante tais competições?
Anand: É difícil relaxar sem ter sentimentos de culpa. Eu pergunto-me a mim próprio: não deveria estar a trabalhar? Mas, você tem de relaxar, caso contrário você não pode jogar bem. A experiência ajuda-nos a encontrar o equilíbrio adequado. Eu gosto de ver filmes antigos de Hitchcock para dar descanso ao cérebro.
SPIEGEL: A sua alcunha é "Tigre de Madras". Mas você não é considerado um predador no tabuleiro. Alguns especialistas dizem que a si falta-lhe o instinto matador (killer instinct). Eles têm razão?
Anand: A questão do tigre foi uma invenção de alguns jornalistas, que provavelmente não se lembraram de outro animal Indiano. Normalmente eu evito o conflito, e, não sou certmente um "assassino" como o Kasparov. Este não é o meu estilo. Estou habituado a mover-me em ambientes pacíficos. Cresci no meio de uma família onde os valores eram muito importantes.
SPIEGEL: Você é um "Bramane", e, pertence à mais alta casta Hindu. Você aprendeu a jogar xadrez com a sua mãe, quando você tinha seis anos. Diferentemente dos prodígios Russos, não teve um treinamento sistemático. Gostava de ter ido para alguma escola especial de xadrez?
Anand: Não. Isso não me teria ajudado muito. Eu teria perdido o divertimento. Eu tinha de ganhar permissão para jogar xadrez com bons resultados na escola. Algumas vezes não podia jogar durante um mês, e estava a morrer por voltar e ficava muito feliz quando podia jogar um torneio de novo. Tudo isto teve em mim uma grande influência. Depois do liceu, eu estudei economia de negócios, porque tinha medo de ficar um "maluquinho" do xadrez.
SPIEGEL: O Americano Bobby Fischer, que morreu no início deste ano, era um maluco do xadrez, paranóico, misantropo. Você encontrou-se com este génio do xadrez, dois anos e meio atrás, na Islândia, onde ele vivia exilado. Como é que isto aconteceu?
Anand: Eu joguei um torneio em Reykjavik, e o Grande Mestre Islandês Helgi Olafsson perguntou-me se eu estaria interessado em encontrar-me com o Bobby Fischer. Olafsson fio buscá-lo ao seu apartamento, enquanto eu esperava no automóvel. Fischer provavelmente, queria evitar que eu visse em que apartamento vivia.
(Bobby Fischer during his final years in Iceland)
SPIEGEL: Acerca do que é que falaram?
Anand: Fischer disse-me que às vezes andava à volta de Reykjavik de autocarro, de forma a ver a cidade. Ele reclamava que não encontrava bálsamo Indiano (Amrutanjan), na Islândia. De repente ele quis ir a um McDonalds. Então lá estava ele, esta lenda do mundo do xadrez, perguntando-me se eu queria ketchup.
SPIEGEL: Vocês falaram de xadrez?
Anand: Com certeza. Estavamos num parque, e, Bobby puxou de um velho tabuleiro de xadrez de bolso, e, analisamos um par de jogos entre Anatoly Karpov, e, Viktor Korchnoi, em 1974. Ele queria provar que todos os jogos do Campeonato do Mundo depois da sua vitória, eram pré-arranjados. Não me convenceu.
SPIEGEL: Porque é que Fischer o quis encontrar especificamente?
Anand: Talvez ele sentisse alguma afinidade. Nós somos ambos de países em que o xadrez não era muito popular, até ao nosso aparecimento. Eu não sou Russo, e, Fischer setiu-se perseguido pelos soviéticos, no passado. E existem evidências que sugerem que os grandes mestres soviéticos juntaram-se contra ele.
SPIEGEL: Fischer propôs uma nova variação do jogo, a qual é chamada Fischer Random Chess. Ele queria que a posição inicial das peças fosse sorteada antes de cada jogo. Isto não seria uma forma de xadrez mais criativo?
Anand: Eu não acho o posicionamento aleatório das peças nada de especial. Será talvez, para as pessoas que já foram activas, e que agora tem pouco tempo. Eles não querem estudar a teoria das aberturas. Mas os sistemas das aberturas fazem parte do xadrez.
(Anand with his wife Aruna)
SPIEGEL: Alguns jogadores de topo ficaram loucos durante as suas carreiras, como o Austríaco Wilhel Steinitz, o primeiro campeão do Mundo reconhecido. Isto é um risco profissional?
Anand: Você precisa de ter uma vida separada do xadrez, e assim não existe qualquer risco. Você tem que ter outros interesses. Mas não houve muitos que tenham ficado seriamente afectados. Mas estes vieram a ser conhecidos de um público mais vasto. Tenho a certeza que haverá tantos [xadrezistas] loucos como médicos ou motoristas de autocarros.
SPIEGEL: Você tem agora 38 anos, o que significa , como um profissional de xadrez você está próximo de se retirar. Por quanto tempo mais, você se vai manter a jogar?
(Wife Aruna, Anand, father Viswanathan, mother Susheela in an CNN-IBN portrait)
Anand: Enquanto conseguir me manter no topo. No momento, sinto-me muito bem. Os meus melhores anos foram os últimos três. Mas está claro que, os jogadores de xadrez estão a aparecer cada vez mais jovens.
SPIEGEL: Nos tempos mais recentes o Norueguês Magnus Carlsen tem aparecido nas manchetes. Ele tem 17 anos, e, no princípio do mês foi, por cinco dias, o número 1 no ranking mundial não oficial. Quão bom é ele?
Anand: Ele será Campeão Mundial mais cedo ou mais tarde. Eu gosto dele. Ele é um fã dos "Monty Pyhton", tal como eu.
SPEIGEL: Existem rumores que ele será o seu "segundo" para o Campeonato do Mundo contra o Kramnik.
Anand: É um rumor que eu também ouvi. Talvez exista alguma verdade nele. Talvez não. Deixe o Kramnik adivinhar. Deixe-o ocupar a sua mente com esta questão. Isto faz parte do jogo psicológico, antes deste tipo de "match". Quando você sabe quem faz parte da equipe do seu adversário, você pode imaginar o que ele está planeando. Portanto, não revelarei nada.
SPIEGEL: Sr. Anand, nós agradecemos-lhe por esta entrevista.
A entrevista foi conduzida por os editores da Spiegel Ansbert Kneip & Maik Grossekathofer. Podem encontrar a versão original, em Alemão, no magazine do Der Spiegel, e, no Spiegel Online.
"Translation by Afonsov"